Abuso de poder na parametrização aduaneira: Receita Federal deve justificar redirecionamento de canal
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1. Introdução
A seleção de declarações de importação para os diferentes canais de conferência aduaneira no Brasil é um processo essencial para o controle do comércio exterior e a fiscalização tributária. No entanto, a parametrização no Canal Vermelho ou em qualquer outro que exija maior rigor fiscal deve obedecer a critérios objetivos, evitando arbitrariedades que possam impactar indevidamente o importador.
A Instrução Normativa RFB nº 680/2006, em seu art. 21, §2º, permite que uma Declaração de Importação (DI) inicialmente parametrizada para o Canal Verde seja redirecionada para outro canal durante a análise fiscal. No entanto, esse redirecionamento não pode ser arbitrário, devendo ser motivado e justificado com a indicação concreta dos indícios de irregularidade na importação.
A falta de fundamentação clara para esse redirecionamento pode configurar desvio de finalidade e abuso de poder, possibilitando a intervenção do Poder Judiciário para garantir que os atos administrativos da Receita Federal sejam realizados com transparência, legalidade e razoabilidade. Além disso, o uso da chamada "senha de supervisão" por Auditores-Fiscais para forçar a inclusão de importações no Canal Vermelho tem sido um mecanismo não compreendido por empresas e operadores do comércio exterior e amplamente usado em tempos de greve pela Receita Federal.
Este artigo discute a obrigação de motivação da Receita Federal ao redirecionar importações para canais de conferência mais rigorosos, o impacto dessa prática nos importadores e as medidas cabíveis para garantir o cumprimento da legalidade, incluindo a possibilidade de questionamento no Judiciário.
2. O Sistema de Parametrização e a Possibilidade de Redirecionamento Manual pelo Auditor-Fiscal
A IN RFB nº 680/2006, que rege o despacho aduaneiro de importação, determina que a parametrização das DIs ocorre de forma automatizada, com base no gerenciamento de risco da Receita Federal. Conforme dispõe o art. 21, a DI pode ser selecionada para um dos seguintes canais:
Canal Verde – Desembaraço automático, sem conferência documental ou física;
Canal Amarelo – Análise documental, sem conferência física (salvo exigência posterior);
Canal Vermelho – Análise documental e conferência física obrigatória;
Canal Cinza – Além das exigências do Canal Vermelho, a DI é submetida à apuração de indícios de fraude na valoração aduaneira.
O §2º do art. 21 da IN 680/2006 prevê a possibilidade de redirecionamento de uma DI inicialmente selecionada para o Canal Verde para outro canal se forem identificados indícios de irregularidade na importação:
"A DI selecionada para canal verde, no Siscomex, poderá ser redirecionada para outro canal de conferência aduaneira durante a análise fiscal, quando forem identificados indícios de irregularidade na importação."
Esse dispositivo não autoriza redirecionamentos arbitrários, mas sim exige que o Auditor-Fiscal fundamente a alteração, apresentando elementos concretos que justifiquem a medida.
Então, quais os indícios de irregularidades que levaram à seleção manual para canal diferente do verde?
3. O Uso da Senha de Supervisão e a Possibilidade de Desvio de Finalidade
A senha de supervisão é um recurso interno da Receita Federal que permite ao Auditor-Fiscal interferir na parametrização automática do Siscomex, alterando manualmente o canal da DI. Essa ferramenta é utilizada para reforçar o controle fiscal em casos específicos, mas seu uso deve ser motivado e registrado no sistema.
Nos últimos anos, importadores têm relatado o uso indevido da senha de supervisão como instrumento de paralisação do despacho aduaneiro em períodos de greve dos Auditores-Fiscais, o que configura desvio de finalidade.
O desvio de finalidade ocorre quando um ato administrativo é praticado para fins diversos daqueles previstos na legislação. No caso da parametrização manual para o Canal Vermelho, a Receita Federal deveria agir exclusivamente com base em critérios de risco e indícios objetivos de irregularidade, e não utilizar esse mecanismo como forma de obstrução deliberada das importações.
Quando o Auditor-Fiscal utiliza a senha de supervisão para redirecionar indiscriminadamente DIs para o Canal Vermelho sem justificativa fundamentada, isso pode caracterizar:
Violação do princípio da motivação (princípio da motivação exige que o administrador público explicite, de forma clara e precisa, os pressupostos de fato e de direito da decisão prolatada, demonstrando a efetiva compatibilidade entre ambos e a correção da medida adotada)
·Omissão da Receita Federal na análise do despacho dentro dos prazos razoáveis.
4. A Necessidade de Fundamentação e o Direito do Importador à Justificativa
O princípio da motivação dos atos administrativos exige que todo ato que imponha restrição a direitos ou obrigações seja devidamente fundamentado com indicação dos fatos e dos fundamentos jurídicos, quando neguem, limitem ou afetem direitos ou interesses.
Isso significa que o importador tem o direito de exigir que a Receita Federal justifique, de forma objetiva e detalhada, o redirecionamento da DI para um canal mais rigoroso. Caso a fundamentação seja inexistente ou inconsistente, a medida pode ser contestada judicialmente.
5. Medidas Jurídicas para Importadores Prejudicados
Diante da falta de fundamentação na alteração do canal de conferência, o importador pode adotar as seguintes medidas:
Dossiê Digital de Atendimento (DDA)
Solicitação formal para que a Receita Federal explique os indícios de irregularidade que motivaram o redirecionamento da DI.
Mandado de Segurança
Se não houver justificativa clara, o importador pode impetrar Mandado de Segurança contra a Receita Federal, requerendo que o juiz determine:
A continuidade do despacho se não houver indícios concretos de irregularidade;
Que a Receita justifique formalmente a alteração da parametrização;
Que e a Receita se abstenha de utilizar a senha de supervisão sem fundamentação adequada.
Habeas Data
Se a Receita Federal não fornecer a justificativa da mudança do canal de parametrização ou alegar que as informações são sigilosas, o importador pode impetrar Habeas Data para ter acesso a esses dados. Isso pode ser útil para:
Obter os registros do Siscomex sobre o motivo da alteração do canal de parametrização da DI;
Acessar eventuais alertas internos da Receita Federal que possam ter motivado a mudança;
Verificar se houve uso da senha de supervisão por parte do Auditor-Fiscal, e, caso tenha havido, exigir a motivação formal para tal ato.
Conforme o entendimento jurisprudencial sobre o Habeas Data, a Administração Pública não pode ocultar informações de interesse do impetrante, especialmente quando essas informações impactam diretamente seus direitos e obrigações.
Se os dados não forem fornecidos via Habeas Data, isso pode reforçar a tese de desvio de finalidade ou falta de fundamentação da Receita Federal, o que pode embasar um Mandado de Segurança subsequente para a continuidade do despacho.
Diferenças Entre Habeas Data e Mandado de Segurança
Critério | Habeas Data | Mandado de Segurança |
Finalidade | Garantir acesso a informações pessoais ou constantes em banco de dados públicos | Proteger direito líquido e certo contra ato ilegal ou abusivo da autoridade pública |
Hipótese de uso | Quando o impetrante quer acessar informações armazenadas em órgãos públicos e não obtém administrativamente | Quando há violação de direito (exemplo: retenção injustificada da mercadoria no despacho aduaneiro) |
Resultado esperado | Fornecimento da informação solicitada pela Receita Federal (exemplo: justificativa da mudança de canal) | Ordem judicial para garantir o desembaraço aduaneiro ou impedir exigência ilegal |
Base legal | Constituição Federal, art. 5º, LXXII; Lei nº 9.507/1997 | Constituição Federal, art. 5º, LXIX; Lei nº 12.016/2009 |
6. Conclusão
A alteração do Canal Verde para o Canal Vermelho ou outros canais de conferência deve ser fundamentada pelo Auditor-Fiscal da Receita Federal com a indicação clara dos indícios de irregularidade. O uso indevido da senha de supervisão, especialmente em situações de greve, pode configurar abuso de poder e desvio de finalidade.
Diante desse cenário, o importador tem o direito de questionar judicialmente a falta de motivação da Receita Federal, buscando o desembaraço da mercadoria e, se necessário, indenização pelos prejuízos sofridos. O controle judicial sobre esses atos é fundamental para garantir a segurança jurídica e a legalidade no comércio exterior brasileiro.
Rogerio Zarattini Chebabi
OAB/SP 175.402
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