Procedimento Fiscal e Retenção de Mercadorias - Estudo de Caso - interposição fraudulenta de terceiros
Introdução
O comércio exterior brasileiro é uma atividade altamente regulamentada, com o objetivo de proteger a economia nacional, garantir o cumprimento das obrigações fiscais e assegurar uma concorrência justa. A Receita Federal do Brasil (RFB) tem um papel central nesse processo, sendo responsável pela fiscalização das operações de importação e exportação, com foco especial no combate a fraudes aduaneiras.
Um dos instrumentos utilizados pela RFB para combater tais fraudes é o procedimento de fiscalização, que pode incluir a retenção de mercadorias, como no caso que será analisado neste artigo. Examinaremos os principais aspectos jurídicos e as implicações da interposição fraudulenta de terceiros e retenção de mercadorias no contexto aduaneiro.
Contextualização do Caso
O caso analisado iniciou-se a partir da identificação, pela Receita Federal, de possíveis irregularidades em quatro Declarações de Importação (DIs) registradas por uma empresa atuante no setor de nutrição animal. As importações, consistentes principalmente em sal natural branco, despertaram suspeitas da autoridade fiscal por conta de indícios de ocultação do real adquirente, interposição fraudulenta e falta de capacidade financeira da empresa importadora.
A empresa investigada apresentou uma conduta repetitiva, registrando a importação de mercadorias e revendendo-as rapidamente a outra empresa, sem que houvesse tempo hábil para negociações comerciais legítimas. A Receita Federal levantou questionamentos sobre a licitude dessas operações, destacando que a empresa compradora não possuía habilitação para operar no comércio exterior, tampouco havia regularizado as licenças necessárias, como a licença de importação exigida pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA).
A retenção das mercadorias foi determinada com base na Instrução Normativa RFB n. 1.986/2020, que regulamenta o Procedimento de Fiscalização de Combate às Fraudes Aduaneiras (FCF). A empresa foi intimada a apresentar documentos que comprovassem a capacidade financeira e a origem dos recursos utilizados para realizar as operações, além de esclarecer os detalhes das transações comerciais.
Detalhamento das Operações e Identificação de Irregularidades
A fiscalização teve como foco quatro DIs, cada uma envolvendo diferentes quantidades de mercadorias e montantes financeiros. As principais inconsistências identificadas foram:
DI nº 23/xxxxxxxx: A empresa importou 34 toneladas de sal natural branco, com valor aduaneiro de R$ 9.323,45. A mercadoria foi registrada sem a licença de importação necessária e vendida imediatamente após sua entrada no Brasil. O rápido escoamento das mercadorias levantou suspeitas sobre a real finalidade da importação, pois, aparentemente, a mercadoria já possuía um comprador previamente determinado, caracterizando interposição fraudulenta.
DI nº 23/xxxxxxxx: A empresa registrou a importação de 140 toneladas de sal no valor de R$ 40.002,20. Novamente, a mercadoria foi vendida em grande parte para a mesma empresa não habilitada no comércio exterior. A Receita identificou que a empresa importadora não possuía capacidade financeira para arcar com a compra e que o pagamento pelas mercadorias foi realizado por terceiros, reforçando os indícios de fraude.
DI nº 23/xxxxxxxx: Com valor aduaneiro de R$ 47.052,20, a operação apresentou as mesmas características das anteriores, com a mercadoria sendo vendida à mesma empresa sem habilitação e sem a devida regularização documental.
DI nº 24/xxxxxxxx: O montante desta operação foi de R$ 17.510,53. Além das suspeitas de ocultação do real adquirente, a Receita Federal também identificou que a empresa importadora não estava em funcionamento no endereço cadastrado e que não havia movimentação financeira suficiente para sustentar a operação.
Fundamentação Jurídica e Atuação da Receita Federal
O artigo 23 do Decreto-Lei n. 1.455/76, combinado com a Instrução Normativa RFB n. 1.986/2020, ampara a atuação da Receita Federal ao identificar práticas fraudulentas nas operações de comércio exterior, tais como a interposição fraudulenta de terceiros. Nesse contexto, a interposição fraudulenta é configurada quando o importador formal, declarado na DI, atua apenas como intermediário para ocultar o verdadeiro adquirente das mercadorias.
A legislação também permite que, diante de indícios consistentes de fraude, a autoridade fiscal retenha as mercadorias até que a investigação seja concluída. No caso em análise, a Receita Federal determinou a retenção das mercadorias até que a empresa investigada apresentasse documentos que comprovassem a regularidade das operações e sua capacidade financeira. Essa medida está prevista no artigo 53 do Decreto-Lei n. 37/1966 e no artigo 68 da Medida Provisória n. 2.158-35/2001, os quais conferem à Receita Federal a prerrogativa de suspender a entrega das mercadorias até que as suspeitas sejam devidamente esclarecidas.
Capacidade Financeira e Omissões Documentais
Um ponto crucial levantado pela Receita Federal foi a falta de comprovação da capacidade financeira da empresa investigada. A análise dos extratos bancários e dos documentos fiscais revelou que a empresa não dispunha de recursos próprios suficientes para financiar as operações de importação. Pelo contrário, os pagamentos eram realizados por terceiros, o que reforça a suspeita de que a empresa estava atuando como fachada para ocultar o real adquirente das mercadorias.
Além disso, as transações realizadas de maneira ágil e sem a devida documentação que comprovasse a regularidade das operações indicaram a interposição fraudulenta, conforme disposto no § 2º do artigo 23 do Decreto-Lei n. 1.455/76. A Receita Federal também observou que, em todas as transações, os fornecedores estrangeiros haviam concedido crédito à empresa investigada, prática incomum no comércio exterior, onde os pagamentos normalmente são antecipados.
Implicações Jurídicas e Estratégias de Defesa
As implicações jurídicas de uma acusação de interposição fraudulenta são graves e podem resultar na aplicação de sanções administrativas e penais, como o perdimento das mercadorias, multas e a responsabilização criminal dos envolvidos. No entanto, é possível que a empresa investigada adote estratégias de defesa baseadas na regularização dos documentos fiscais, apresentação de provas que comprovem a licitude das transações e negociação com a autoridade fiscal para evitar a aplicação das penalidades mais severas.
A defesa, neste tipo de caso, deve focar na comprovação da capacidade financeira da empresa e na origem dos recursos empregados nas operações de importação. Além disso, é necessário demonstrar que as transações foram legítimas e que o adquirente oculto não se enquadra nas hipóteses de interposição fraudulenta.
Conclusão
O caso analisado destaca a importância da fiscalização aduaneira no combate às fraudes nas operações de comércio exterior. A retenção de mercadorias e a abertura de procedimento fiscal são instrumentos eficazes utilizados pela Receita Federal para coibir práticas ilícitas, proteger a economia nacional e garantir uma concorrência justa. Para as empresas que atuam no comércio exterior, é essencial estar em conformidade com as normas fiscais e aduaneiras, adotando boas práticas de compliance e assegurando a correta documentação das transações.
A regularização das operações, a apresentação de provas e uma estratégia de defesa bem fundamentada podem ser determinantes para evitar sanções graves e assegurar a continuidade das atividades empresariais no comércio exterior.
Rogerio Zarattini Chebabi
OAB/SP 175.402
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