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Responsabilidade Solidária e Pena de Perdimento no Direito Aduaneiro Brasileiro: Uma Análise Profunda



Introdução


A globalização e a crescente integração econômica entre os países trouxeram novas oportunidades de expansão comercial para as empresas brasileiras, especialmente no campo das operações de importação e exportação. Contudo, o aumento do fluxo de mercadorias através das fronteiras nacionais também implicou a necessidade de maior vigilância e controle por parte das autoridades fiscais, em particular a Receita Federal do Brasil (RFB), que tem a responsabilidade de prevenir fraudes e evasão fiscal nas operações aduaneiras.


Entre as medidas mais rigorosas adotadas pela Receita Federal para coibir práticas fraudulentas está a aplicação da pena de perdimento, uma sanção gravíssima que tem por objetivo a apreensão e a perda de bens objeto de infrações aduaneiras. Um dos fundamentos legais para a aplicação dessa pena está na constatação de interposição fraudulenta de terceiros e na ocultação do real adquirente, em especial quando se trata de importações por conta e ordem de terceiros ou encomenda. Nesses casos, a legislação aduaneira brasileira estabelece a responsabilidade solidária entre os agentes envolvidos.


O presente artigo visa a oferecer uma análise aprofundada sobre os principais aspectos relacionados à responsabilidade solidária e à pena de perdimento no contexto do direito aduaneiro brasileiro. Para isso, será necessário examinar a base legal e doutrinária dessas figuras, bem como explorar as implicações práticas dessas sanções em operações de comércio exterior, à luz da jurisprudência dos tribunais brasileiros.


1. Contextualização do Direito Aduaneiro no Brasil


O direito aduaneiro é um ramo do direito público que se dedica ao estudo das normas e princípios que regem o comércio internacional, especialmente no que diz respeito ao trânsito de mercadorias entre as fronteiras nacionais e as relações decorrentes dessas operações. Em sentido amplo, abarca não apenas a regulamentação sobre a entrada e saída de mercadorias do território nacional, mas também o controle sobre o recolhimento de tributos e a prevenção de fraudes no comércio exterior.


A legislação aduaneira brasileira é vasta e multifacetada, sendo composta por uma série de normas que regulamentam desde a habilitação de empresas para operar no comércio exterior até a fiscalização de suas atividades. Entre as normas centrais do direito aduaneiro estão o Decreto-Lei nº 1.455/1976, que trata da fiscalização e controle aduaneiro, e a Lei nº 10.833/2003, que introduziu importantes modificações no regime tributário aplicável às operações de comércio exterior.


O papel da Receita Federal é de extrema relevância nesse contexto, pois é o órgão responsável pela fiscalização, arrecadação e administração dos tributos federais, incluindo aqueles incidentes sobre as operações aduaneiras, como o Imposto de Importação (II), o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), a Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (COFINS), entre outros. É nesse contexto que surge a aplicação da responsabilidade solidária e da pena de perdimento, mecanismos eficazes para a repressão de práticas ilícitas no comércio exterior.


2. A Responsabilidade Solidária no Direito Aduaneiro


A responsabilidade solidária no direito aduaneiro decorre do princípio de que todos os agentes que participam, direta ou indiretamente, de uma operação de comércio exterior devem responder de maneira conjunta pelos tributos devidos e pelas infrações cometidas. Essa responsabilização é especialmente relevante em casos de interposição fraudulenta de terceiros, em que se busca ocultar o real adquirente ou beneficiário das mercadorias.


2.1 Base Legal da Responsabilidade Solidária


A responsabilidade solidária em operações aduaneiras está prevista em diversos dispositivos da legislação tributária e aduaneira. Entre os principais, destacam-se o Decreto-Lei nº 37/1966 e a Medida Provisória nº 2.158-35/2001, que introduziram importantes inovações no regime de fiscalização aduaneira, atribuindo responsabilidades solidárias tanto ao importador quanto ao adquirente de mercadorias.


O artigo 95 do Decreto-Lei nº 37/1966 é claro ao estabelecer a solidariedade entre o importador e o adquirente em operações por conta e ordem de terceiros ou por encomenda. Essa solidariedade implica que ambos os agentes serão responsáveis pelos tributos devidos e pelas sanções aplicáveis em caso de infração, sendo que a Receita Federal tem o poder de cobrar os valores de qualquer uma das partes envolvidas na operação.


A Medida Provisória nº 2.158-35/2001, por sua vez, reforça a importância da responsabilidade solidária ao prever, em seu artigo 77, que tanto o importador quanto o adquirente serão responsabilizados pela correta apuração dos tributos e pelo cumprimento das obrigações acessórias. Essa norma é fundamental para a proteção do erário e a prevenção de fraudes fiscais, pois garante que o Estado tenha meios eficazes para cobrar os tributos devidos em operações de comércio exterior.


2.2 Características da Responsabilidade Solidária


A responsabilidade solidária no direito aduaneiro brasileiro possui algumas características peculiares que merecem destaque:


  • Pluralidade de devedores: A solidariedade decorre da participação de mais de um agente na operação de importação. Em geral, envolve o importador e o adquirente, mas pode incluir outros agentes, como despachantes aduaneiros, intermediários e transportadores.


  • Indivisibilidade da obrigação: A responsabilidade solidária é indivisível, ou seja, a Receita Federal pode cobrar a totalidade dos tributos de qualquer um dos responsáveis, sem que o devedor tenha o direito de exigir que a cobrança seja dividida proporcionalmente entre os demais responsáveis.


  • Cessão de crédito: Em casos de operações por conta e ordem de terceiros, o adquirente pode repassar ao importador valores correspondentes à operação, mas isso não exime o adquirente de sua responsabilidade perante o Fisco.


2.3 A Importação por Conta e Ordem de Terceiros


Um dos principais contextos em que se verifica a aplicação da responsabilidade solidária é na importação por conta e ordem de terceiros. Nesse tipo de operação, a pessoa jurídica contratada para realizar a importação age em nome e por conta de outra pessoa jurídica, chamada adquirente. O importador formaliza todos os trâmites necessários à entrada das mercadorias no país, mas os bens pertencem, desde o início, ao adquirente.


A Instrução Normativa RFB nº 1.861/2018, que regulamenta essa modalidade de importação, define com clareza as obrigações de cada uma das partes. O adquirente é considerado o responsável pelo pagamento dos tributos incidentes sobre a operação, enquanto o importador atua como mero intermediário. Contudo, a legislação prevê que ambos os agentes podem ser responsabilizados solidariamente pelo pagamento de tributos e pelo cumprimento das demais obrigações fiscais e aduaneiras.


3. Pena de Perdimento: Natureza e Aplicabilidade


A pena de perdimento é uma das sanções mais severas previstas na legislação aduaneira brasileira. Essa medida implica a perda definitiva dos bens que tenham sido objeto de infração, sendo esses bens revertidos em favor da União para que decida sua destinação. A pena de perdimento pode ser aplicada em uma série de situações, incluindo casos de fraude, contrabando, descaminho e interposição fraudulenta de terceiros.


3.1 Fundamento Legal da Pena de Perdimento


O Decreto-Lei nº 1.455/1976, em seu artigo 23, é a base legal para a aplicação da pena de perdimento. Esse dispositivo estabelece que será aplicada a pena de perdimento sobre mercadorias estrangeiras que sejam objeto de ocultação do sujeito passivo, do real comprador ou vendedor, ou de responsáveis pela operação. A interposição fraudulenta de terceiros é uma das hipóteses mais comuns que ensejam a aplicação dessa sanção.


O Regulamento Aduaneiro (Decreto nº 6.759/2009) complementa essa disposição, especificando os casos em que a Receita Federal pode aplicar a pena de perdimento. Entre esses casos, estão incluídas as mercadorias que entram ou saem do país sem o pagamento dos tributos devidos, ou que são objeto de práticas fraudulentas.


3.2 Pressupostos para a Aplicação da Pena de Perdimento


A aplicação da pena de perdimento exige que a autoridade fiscal comprove a existência de infração grave à legislação aduaneira. Em particular, nos casos de interposição fraudulenta de terceiros, é necessário que a fiscalização demonstre que houve intenção de ocultar o real adquirente ou beneficiário das mercadorias, caracterizando uma fraude à legislação tributária.


Os tribunais brasileiros têm se manifestado de forma consistente no sentido de que a pena de perdimento deve ser aplicada de maneira rigorosa, mas sempre observando os princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa. Isso significa que as empresas envolvidas têm o direito de apresentar defesa administrativa e judicial contra a aplicação da pena, e que essa sanção só pode ser mantida se houver provas robustas e inequívocas da infração cometida.


3.3 A Interposição Fraudulenta de Terceiros


A interposição fraudulenta de terceiros é um dos principais fundamentos para a aplicação da pena de perdimento no direito aduaneiro. Essa prática ocorre quando uma empresa ou pessoa física é usada como fachada para ocultar o real adquirente ou beneficiário de mercadorias importadas, com o objetivo de reduzir a carga tributária ou de burlar a fiscalização aduaneira. A interposição pode ocorrer de diversas formas, sendo uma das mais comuns a importação por conta e ordem de terceiros, em que o verdadeiro comprador não figura na documentação oficial.


A jurisprudência brasileira tem sido rígida na punição de fraudes dessa natureza. Para caracterizar a interposição fraudulenta, a Receita Federal deve demonstrar que a empresa importadora ou intermediária não possui os meios econômicos ou operacionais para realizar a importação por conta própria, ou que o real adquirente foi ocultado deliberadamente para evitar a incidência de tributos ou o cumprimento de obrigações fiscais.


Em situações de interposição fraudulenta, a pena de perdimento é aplicada não apenas sobre as mercadorias importadas, mas também pode acarretar outras sanções, como a inaptidão do CNPJ da empresa envolvida e a representação fiscal para fins penais, o que pode levar à responsabilização criminal dos sócios e administradores.


3.4 A Pena de Perdimento no Contexto da Importação por Encomenda


A importação por encomenda é outra modalidade de operação comercial que pode gerar a aplicação da pena de perdimento, caso seja comprovada a interposição fraudulenta de terceiros. Nesse tipo de operação, o importador adquire mercadorias no exterior com recursos próprios, mas com o compromisso de revender esses bens a uma empresa previamente determinada (encomendante). A legislação prevê que, se o encomendante estiver oculto ou se a operação for realizada de forma a fraudar o Fisco, a pena de perdimento poderá ser aplicada.


A Receita Federal tem adotado uma postura rigorosa ao fiscalizar operações de importação por encomenda, exigindo que tanto o importador quanto o encomendante comprovem sua capacidade financeira e regularidade fiscal. Em caso de irregularidades, os agentes podem ser responsabilizados solidariamente pelos tributos devidos, e as mercadorias podem ser apreendidas.


4. A Jurisprudência sobre a Responsabilidade Solidária e a Pena de Perdimento


Os tribunais brasileiros têm consolidado uma vasta jurisprudência em matéria de responsabilidade solidária e pena de perdimento no direito aduaneiro. A seguir, serão analisados alguns precedentes que ilustram a aplicação desses institutos no contexto das operações de comércio exterior.


Os Tribunais têm se manifestado de forma reiterada sobre a legitimidade da pena de perdimento, especialmente em casos de interposição fraudulenta. Em diversos julgados, têm enfatizado que a aplicação da pena deve estar baseada em provas concretas e robustas da fraude cometida, não sendo suficiente a mera suspeita de irregularidade. Além disso, têm reafirmado que a sanção de perdimento não pode ser aplicada de forma automática, devendo-se garantir o direito ao contraditório e à ampla defesa.


Há o entendimento consolidado de que a solidariedade se aplica não apenas ao importador e ao adquirente, mas também a qualquer agente que tenha contribuído para a realização da operação de importação ou para a ocultação do real adquirente.


Os Tribunais decidiram que, quando comprovada a interposição fraudulenta, tanto o importador quanto o adquirente serão responsáveis pelos tributos devidos, independentemente de quem tenha promovido diretamente a importação.


Além disso, o entendimento é de que a responsabilidade solidária não exclui a possibilidade de o Fisco optar por cobrar os tributos de um dos devedores solidários, conforme prevê o artigo 124 do Código Tributário Nacional (CTN). Esse entendimento é fundamental para garantir a eficiência na arrecadação de tributos e evitar que fraudes e artifícios contábeis sejam utilizados para ocultar o real responsável pela operação de importação.


5. Considerações Finais


A responsabilidade solidária e a pena de perdimento são instrumentos fundamentais para a proteção do erário e o combate à fraude no comércio exterior. A legislação brasileira, ao estabelecer esses mecanismos, visa garantir que os agentes envolvidos em operações aduaneiras atuem de forma transparente e regular, cumprindo suas obrigações fiscais e evitando a prática de ilícitos que possam comprometer a arrecadação tributária.


O presente artigo buscou oferecer uma análise aprofundada desses dois importantes institutos, destacando suas bases legais, suas características principais e as implicações práticas de sua aplicação. A responsabilidade solidária, ao estabelecer que todos os agentes envolvidos em uma operação de comércio exterior respondem de forma conjunta pelas obrigações fiscais, contribui para a prevenção de fraudes e a garantia de que os tributos devidos serão recolhidos. Já a pena de perdimento, ao punir severamente as infrações aduaneiras, funciona como um desestímulo à prática de ilícitos no comércio exterior.


Contudo, é fundamental que a aplicação desses institutos respeite os direitos constitucionais das partes envolvidas, especialmente o contraditório e a ampla defesa. A pena de perdimento, em particular, só pode ser aplicada quando há provas robustas da infração cometida, e as empresas têm o direito de contestar essa sanção por meio dos recursos administrativos e judiciais previstos na legislação.


O estudo da jurisprudência revela que os tribunais brasileiros têm sido rigorosos na punição de fraudes no comércio exterior, mas sempre com a devida cautela para garantir que as sanções aplicadas sejam proporcionais e fundamentadas em provas concretas. A responsabilidade solidária e a pena de perdimento continuarão a desempenhar um papel central na regulação das operações de comércio exterior no Brasil, contribuindo para a proteção do erário e a promoção de um ambiente de negócios mais justo e transparente.


Rogerio Zarattini Chebabi

OAB/SP 175.402

 

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